quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Um olhar sobre o fundo do poço

Vivemos com a sensação de que no passado tudo foi melhor. O sorvete de chocolate tinha um gosto mais apurado, os jovens eram mais politizados, a televisão voltada para a família e a música com conteúdo mais inteligente. Saudade dos bons e velhos tempos. Tolice. O brasileiro tem essa mania boba de voltar ao passado e alardear para a deturpação dos valores. Um saudosismo da época em que a disciplina era fruto de uma ditadura burra. Pura hipocrisia! Com a abertura política, a televisão ficou mais livre e mais inteligente. No final dos anos 90, contudo, a liberdade virou libertinagem. A TV aberta, de fato, se abriu: ao faturamento e à guerra fria na busca pela preferência popular.

Em 23 de agosto de 2000, a Revista Veja publicou números da guerra pela audiência entre dois grandes apresentadores de TV em uma matéria intitulada: “A estratégia de Gugu para tornar-se o rei dos domingos”. Noticiava que o programa do SBT, há doze semanas, levava vantagem sobre o concorrente Global. A tática era concentrar os quadros de “primeira” linha durante o confronto com Fausto Silva.

Nesta época, os telespectadores assistiam a um turbilhão de quadros de gosto duvidoso. O SBT tinha a libidinosa Banheira do Gugu, em que artistas de baixo calão esfregavam-se em uma disputa entre homens e mulheres em busca do maior número de sabonetes. Era um festival de peitos e bundas. Closes quase ginecológicos preenchiam a tela. Um prato cheio para a criançada. Havia também o concurso “Carla Perez Mirim”, em que as menininhas se vestiam feito a loira do Tchan, com direito a um figurino quase obsceno e gestos nada infantis.

Mudando de canal, a Rede Globo mostrava-se disposta a abrir mão do seu cultuado padrão de qualidade, pelo menos aos domingos. Destaque para a disputa das novas integrantes do É o Tchan, responsável pelos maiores picos do Domingão do Faustão. Ainda nessa época foi apresentado o Sushi Erótico. No quadro, os atores degustavam comida japonesa sobre o corpo de modelos nuas. Outro exemplo foi o caso Latininho, quando o programa explorou a imagem de um deficiente de modo grotesco.

Um pouco mais tarde, no início desta década, essas apelações conquistavam lugar até mesmo nos dias de semana. Márcia Goldschimidt e João Kleber apresentavam seus particulares shows de horrores. O primeiro trazia uma pauta baseada em um falso assistencialismo. Casos reais (até que alguém prove o contrário) eram levados ao palco, em uma espécie de tribuna popular. O segundo tinha uma proposta, a princípio, humorística, condizente com o antigo slogan da emissora “uma opção de qualidade na TV”. Com o tempo – e com quadro teste de fidelidade, especificamente – virou um festival de erotismo e um teatro de quinta categoria.

Hoje, a televisão está mais ponderada e, até certo ponto, regulamentada. Novelas como “Uga Uga”, por exemplo, não seriam mais liberadas para a faixa das 19h. Como reflexo de toda essa náusea televisiva, a programação expeliu, mesmo que forçosamente, algumas reações. João Kleber e suas pegadinhas politicamente incorretas levaram a um rumoroso processo que fez a RedeTV! ser retirada do ar em São Paulo. Dispensado pela emissora, o humorista trabalha hoje em Portugal. Márcia, após um período afastada da TV, voltou a apresentar um programa de auditório nas tardes da Band. O conteúdo está menos apelativo. A apresentadora, contudo, ainda faz um jogo cênico irritante, ainda que comedido.

Gugu Liberato, após sucessivas quedas de audiência, amplificadas pela farsa do PCC, em setembro de 2003, hoje investe em uma pauta voltada para o assistencialismo e para o entretenimento. Faustão reergueu o seu programa, com a participação de grandes nomes do elenco global, e retomou a liderança.

A TV vive um momento interessante. Aos poucos, a audiência se pulveriza e se qualifica. Emissoras, como a Rede Record, enfim perceberam que entretenimento inteligente agrega faturamento. Baixaria pode até atrair audiência, mas não necessariamente anunciantes. Vendo por esse ângulo, chegamos ao fundo do poço e evoluímos. E como brasileiro adora felicidade por comparação, eis a verdade: já foi bem pior.

Aprendemos a vomitar tudo aquilo que nos faz mal. O ideal seria não precisar desse artifício. Logo poderemos desenvolver uma bulimia e, estando doentes, as pragas voltam, nuas e cruas, prontas para atacar os sistemas nervosos e esvaziar ainda mais a TV aberta.

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