segunda-feira, 6 de outubro de 2008

A caricatura da pobreza

Capítulo 2 do artigo: “Chaves: um estereótipo da latinidade mexicana”

RESUMO:

Segundo capítulo do artigo “Chaves: um estereótipo da latinidade mexicana”, escrito por João Cláudio Lins. Trata-se de uma análise, em quatro partes, do programa humorístico Chaves, exibido no Brasil há vinte anos. O seriado concentra personagens e contextos que criam, de modo estereotipado e caricatural, uma identidade sócio-cultural do México. O programa realiza uma espécie de anti-cultura da estética hollywoodiana, construindo personagens feios e pobres, que se cruzam num cortiço mexicano, na década de 70. Analisa-se aqui a contribuição do seriado na construção dessa identidade. Examina-se também a forma e o conteúdo do referido humorístico, que carnavaliza a pobreza de uma comunidade e aposta na produção de um humor circense. Ao fim, faz-se uma comparação formal e narrativa do formato, a partir da afirmação e negação da estética norte-americana.


CHAVES E A CRÍTICA SOCIAL

Há quase 40 anos sendo exibido no México e há mais de 20 no Brasil, Chaves chamou a atenção do público e da crítica pelo seu conteúdo simples e despretensioso. Para se ter idéia do sucesso do seriado, seria como se o programa “Família Trapo”, exibido no Brasil na década de 70, fosse visto até hoje e tivesse aceitação e repercussão entre as novas gerações. Kashner (2006) vê o humorístico como um fenômeno televisivo. Um formato que não envelhece e que atrai cada dia mais fãs. Alguns estudiosos, contudo, discutem a “simplicidade” e a “despretensão” de Chaves.

Domingues (2002), em um ensaio “Labirinto em vale de lágrimas televisivas”, questiona o seriado quanto à sua alienação frente à realidade mexicana. Para o autor, o seriado distancia-se do mundo em que vive, provocando nos telespectadores uma mensagem de conformismo, como se a pobreza fosse algo natural. Para ele, Chaves é o produto da falta de critica resultante de anos de ditadura. Diz que interrogar El Chavo é questionar um seriado que se promove com o espetáculo da miséria, que concentra histórias e contextos acerca de uma vila pobre e de uma criança desamparada. Para ele, o enredo propõe uma ideologia estética de violência gratuita descarregada todos os dias nas consciências infantis.

Contrapondo Domingues, Yglesias (1990) aponta a valorização da ética da solidariedade sugerida pelo seriado. A autora admite, em seu ensaio publicado na revista Herência, que há, de fato, uma diferença social entre os personagens do seriado Chaves. Numa mesma vila, juntam-se uma família que perde o status econômico com a morte do patriarca, um menino de rua abandonado, uma anciã solitária e um desempregado viúvo que mora com a filha. Suas aspirações sociais são diferentes. “Os personagens que vivem fora da vila não atuam como uma ameaça real para o meio: tanto o intelectual (o professor) como o proprietário (Sr. Barriga) penetram no ambiente como algo positivo, parecem querer abrir a esperança para um mundo melhor, onde todos pensem e se preocupem com os outros. (...) O problema social é um problema do Estado, da sociedade, isso é inegável. (...) O mundo que representa El Chavo del Ocho é um mundo solitário e não maniqueísta, em que os personagens não são heróis, nem anti-heróis, nem bons, nem maus. Os personagens são pessoas um pouco estranhas e pouco convencionais. São seres humanos que atuam melhor ou pior segundo as circunstâncias, ainda que a sociedade não os favoreça, representam essencialmente o positivo.” (YGLESIAS, 1990).

Para Valdizán (2005), no seriado, a fraternidade entre os personagens supera as divergências que sempre haverá entre as pessoas. Para ele, Chaves faz sucesso por ser um fenômeno de massa com códigos e personagens universalmente latinos: o “malandro” (o astuto que dribla a pobreza), pequenas doses de melodrama folhetinesco (satirizado pelas cenas de romance entre Girafales e Florinda), a precariedade de uma vila suburbana, entre ourtos. Ele nos faz rir com roteiros que, em condições realistas, deveriam incomodar. Kaschner, em sua obra, aponta para a ótica humanista do seriado, afirmando que “nenhum personagem é mostrado sob a ótica maniqueísta, do bom versus o mal. Representados sob uma ótica humanista, todos têm suas nuanças. Para além do estereótipo, os personagens se mostram humanos, têm seus contrários conciliados, jamais anulados”. (KASCHNER, 2006, p.102)
Em entrevista à revista Veja, ao ser questionado sobre o posicionamento político do seriado, Roberto Bolaños defendeu-se. Para o autor, o seriado não foi concebido para criticar o modelo político em que vivemos. Mostra-se passivo às críticas e reforça que Chaves é apenas um humorístico infantil e que suas pretensões limitam-se à diversão e não ao protesto. (VALLADARES, 1999).

OS PERSONAGENS E A IDENTIDADE SÓCIO-CULTURAL DO MÉXICO

Em um contexto geral, os personagens de Chaves, enquanto representações estereotipadas de um estrato marginalizado do povo mexicano, apresentam traços não somente sociais, mas também elementos psicológicos bem demarcados. Expondo fraquezas, incompletudes e mesmo fracassos pessoais e profissionais, a despeito de toda a caricaturização, carregam a complexidade dos seres humanos que vivem em um ambiente pobre e excluído. Por exemplo, o personagem de Sr. Madruga é viúvo. Sua filha, Chiquinha, não tem bons modos, talvez por não ter em casa uma figura materna para orientá-la.
Dona Florinda é viúva e Quico, portanto, não tem pai. Sr. Barriga cuida sozinho de seu filho, Nhonho. O professor Girafales é um professor de escola pública solteiro. Adoraria se casar, mas com seu ínfimo salário (professor no México também é desvalorizado) não pode sustentar mais duas pessoas.

Todos os personagens da vila sofrem preconceito contra suas condições sociais. Sr. Madruga não tem emprego. Dona Clotilde não trabalha e vive de uma pensão. Dona Florinda depende da aposentadoria de seu finado marido. O garoto Chaves sobrevive somente da caridade alheia. Desde um ponto de vista político-ideológico, em aparência, estaríamos diante de um programa profundamente conservador. Uma atração que legitima a marginalidade, a pobreza e não propõe troca alguma (YGLESIAS, 1990).

No que se refere aos papéis de gênero, o seriado inova, quebrando a estrutura folhetinesca em que o homem é bravo, dominador e a mulher, frágil, dócil e ingênua. Além de sugerir igualdade entre os sexos, faz uma verdadeira inversão de papéis e vai de encontro ao “machismo mexicano”. Tudo isso na década de 1970.

Em matéria à revista mexicana Herência, Yglesias questiona se “aqueles que vêem o programa dentro de uma visão eminentemente política podem se perguntar: ‘Qual é a esperança de integração destes personagens ao mundo externo, à sociedade?’” (YGLESIAS 1990). De fato, El Chavo del Ocho não apresenta soluções nem para o México e nem para os países pobres. E parece nem ter essa pretensão. O programa foi feito apenas de trechos do cotidiano, embalados por pequenas lições de moral e lições de igualdade.

Kaschner (2006) propõe reflexões interessantes em sua obra, intitulada “Chaves de um Sucesso”: analisa fatores que exploram o jogo de espelhos entre a ficção de Chaves e a realidade latino-americana. Destaca que a vila é um espaço peculiar de convívio de pessoas de classes sociais bastante díspares, assim como acontece nas nações subdesenvolvidas. Aponta também para o fato de os protagonistas do seriado não terem padrões importados. São mais próximos da a realidade latino-americana. Eles vivem situações cotidianas, às vezes esdrúxulas, que se contrapõem às narrativas vitoriosas dos EUA, chamando a atenção para nossa realidade, com todas as contradições e problemáticas. Kaschner analisa, ainda, semelhanças sócio-culturais entre o Brasil e o México: imensidão do território, a pujança cultural e o grande potencial econômico em contraste com a miséria social. São povos espirituosos, que riem de si mesmo, um dos aspectos primordiais do humor.

No próximo capítulo: A negação e a afirmação da estética Holywoodiana.

Referências deste capítulo:
KASHNER, Pablo. Chaves de um sucesso. Rio de Janeiro: Editora Senac Rio, 2006
VALLADARES, Ricardo. Entrevista com Roberto Bolaños. Veja: São Paulo, 20 out, 1999.
DOMINGUES, Fernando Buen Abad. Laberinto em el Valle televisivo. Madrid: Ediciones Laberinto, 2002.
VALDIZÁN, Rafael. El Comercio. Disponível em: . Acesso em:16 nov. 2005.
YGLESIAS, Maria Perez. El Chavo del Occho: por que los aman los niños? Revista Herência: Editorial de la Universidad de Costa Rica (UCR), set.1990.

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